Save our Souls. Rascunhos, verdades, mentiras, soluços.

quarta-feira, 3 de outubro de 2007

Latido

Estava chorando, não sabia por quê. Estava apenas esperando o ônibus, o dia estava claro, bonito, a padaria em frente estava cheia com a nova fornada, o cheiro de pão francês pairava o ar, um cachorro à direita o olhava fixamente, não entendia o motivo. De repente sua atenção foi desviada para um grupo de crianças brincando numa pracinha do lado direito da padaria: brincavam de pega-pega, um menino loiro, bem cuidado para uma criança, estava correndo atrás de uma menina morena de cabelo chanel que usava uma camisa branca e um shorts bege. De vez em quando o menino tentava pegar outras crianças, quando lhe surgia a oportunidade ao passar por elas, porém preferia correr atrás da menina, alguma rixa?

Latido.

Latido.

Olhou de volta para o cachorro, que agora latia sem parar, ainda olhando para ele. Não entendia o que o cachorro queria...

- Barulhento, não? – Era uma mulher que pairava os 43, pensou, seus olhos eram de um verde muito profundo e familiar, carregava consigo um saco com um pouco da nova fornada.

- É... – Disse o garoto um pouco encabulado. Aquela mulher lhe lembrava alguém e era extremamente linda – Mas não sei por qual motivo late tanto.

- Talvez queira dizer algo. – falou a mulher enquanto se levantava e chamava o ônibus que vinha. Pegou o saco de pão no banco e quando estava para entrar se despediu – Quem sabe nos esbarramos por aí, fique de olho. – respondeu com um sorriso e um aceno de mão.

Latido.

Sim, o cachorro todo esse tempo havia latido. Enquanto conversava com a mulher o latido tinha ficado ainda mais forte. Resolveu tentar ignorar os latidos. Olhou para padaria e continuou observando a fila do pão: Alguém chegava ao balcão e, normalmente, levantava a mão com tantos dedos quanto o número de pães desejava. Viu esse ritual se repetir inúmeras vezes, menos quando chegou a vez de um menino, apenas um pouco mais novo que ele, talvez um ano e meio, o ultimo da fila que falou o que queria. A mulher atrás do balcão fez uma cara falsamente triste e disse algo que fez a face do garoto murchar. Falou mais alguma coisa, mas a resposta foi dada em um simples gesto: A atendente pegou o cesto de pão e lhe mostrou que havia apenas um.

Latido.

Desta vez até tomou um susto. O latido do cachorro foi agudo e o som lembrava alguém agonizando. Tentou chama-lo, mas não obteve resposta. Bateu palmas, estalou os dedos, assobiou, todavia o cachorro não respondia a nada, apenas latia.

Tentou esquecer o cachorro. Olhou para o relógio: logo estaria longe dali, daqueles latidos infernais, daquele sentimento que ainda não conseguia definir.

Latido, Latido, Latido, Latido, Latido, Latido, Latido, Latido, Latido.

Explosão.

Voltou seu olhar para a praça onde as crianças brincavam, provavelmente aquele barulho havia sido o menino loiro batendo na banca de jornal por não conseguir brecar, ele estava se levantando do lado dela com a mão no ombro, mas sem cara de dor, mas isso não lhe incomodava em nada, estava paralisado olhando para outra coisa: um garoto embaixo de uma árvore. Não o tinha visto ali antes, não estava participando da brincadeira. Era um menino magricela, não havia sequer um pingo de força em seu corpo e percebia que em seu olhar também não havia nada. Apenas olhava para a garota de cabelo chanel, seu olhar era vago. Ou pelo menos até o garoto loiro pular em cima dela e conseguir o seu objetivo, pegou-a. Caíram no chão, riam, riam bastante e ofegavam exaustos. Voltou o olhar para o garoto da árvore e seus olhos agora queimavam em raiva, ódio, inveja, amor. O garoto parecia a ponto de explodir...

Latido, Latido, Latido, Latido, Latido, Latido, Latido, Latido, Latido, Latido, Latido, Latido, Latido, Latido, Latido, Latido, Latido, Latido, Latido, Latido, Latido, Latido, Latido, Latido, Latido, Latido, Latido, Latido, Latido, Latido, Latido, Latido, Latido, Latido, Latido, Latido, Latido, Latido, Latido, Latido, Latido, Latido...

- Chega, porra!!! – Berrou com tanta força, o garoto do ponto, que sua voz sumiu enquanto terminava o berro. O cachorro silenciou. Pode se ouvir o vento passar pela rua, até que um gemido pode ser ouvido. Ele não entendia. Foi então que desatou a chorar. Chorar incontrolavelmente. Socava o banco, ficou desesperado, não sabia o que era aquilo, não sabia como parar. Ficou sem ar, se encolheu todo no ponto, estava realmente agonizando.

Demorou a se recuperar. Quando, finalmente, suas lágrimas secaram o ônibus já havia passado. Ele não tinha percebido ela se aproximar.

Saudade.

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